ESCALADA MISTA, A DIVINA
No campo da escalada mista de grande qualidade a Serra da Estrela possui um manancial à espera de pretendentes.
Trata-se de um verdadeiro diamante em bruto, pronto a ser
lapidado mas, aparentemente, sem muitos candidatos à vista para o fazer.
Todos os anos o vento, a neve e o gelo conspiram, deixando
as paredes de granito, cobertas de branco, com uma “colagem” tal, que por vezes,
torna difícil reconhecer a exacta localização dessas paredes. Portugal?
Escócia? Cântaro Magro? Ben Nevis?
A Face Oeste do Cântaro Magro, um manancial para a escalada mista.
A Face Oeste do Cântaro Magro, um manancial para a escalada mista.
Como é evidente, por cá, as condições ideais nunca (ou muito
raramente) chegam a atingir a longevidade temporal que nas latitudes mais
elevadas do continente, contudo, é possível realizar escaladas bastante
interessantes e satisfatórias.
As premissas a serem tidas em conta são as seguintes:
As premissas a serem tidas em conta são as seguintes:
1ª Abolir os preconceitos.
2ª Alguma imaginação.
3ª Estar no local certo à hora certa.
A primeira premissa é a mais importante e, na verdade, é a
que condiciona todas as actividades invernais na Serra da Estrela. Já perdi a
conta às vezes que ouvi a frase: “Na Estrela não temos condições para o gelo!”
Esta afirmação não é verdadeira nem tão pouco corresponde às provas surgidas
(quase) todos os anos, com a abertura de novos itinerários, mesmo que inseridos
em pleno “aquecimento global”.
A segunda premissa bem pode ser anexada à primeira. Uma vez
abolidos os preconceitos, parte-se para a escolha do objectivo.
A escalada invernal na Serra da Estrela não se compadece com
planos demasiado rígidos nem com ideias pré concebidas. Muitas vezes, quando todas
as previsões apontam para a possibilidade de determinada cascata se encontrar
nas condições ideais, eis que, “in situ”, apercebemo-nos que afinal essa cascata
não se chegou a formar. No entanto, espreitando um pouco mais para o lado,
descobrimos, assim de repente, uma outra linha de gelo em condições aceitáveis,
contrariando todas as expectativas e previsões.
Na maioria das situações, rebuscando um pouco nos meandros
da imaginação é possível encontrar um qualquer objectivo interessante para
arranhar os piolets e os crampons.
A terceira premissa contém uma relação directa com o factor
sorte, sobretudo para aqueles (a grande maioria) que apenas tenham
disponibilidade aos fins-de-semana.
O “estar no local certo à hora certa” é um aspecto
fundamental para a realização de algumas escaladas de formação mais rara. Neste
aspecto, o advento das previsões meteorológicas “na hora” e localizadas,
difundidas na Internet, encurtaram bastante as fronteiras entre a simples sorte
e o bom planeamento.
Na Serra da Estrela, um dos melhores exemplos que corroboram
este raciocínio foi a devida formação da famosa e rara “Cascata do Inferno” no
Inverno 2012/2013, cuja rápida troca de informações baseadas nas previsões
meteorológicas, possibilitaram estabelecer um verdadeiro recorde de ascensões
no mesmo dia.
Seguidores assíduos das premissas descritas anteriormente, a
Daniela e eu, já nos acostumámos a tentar adaptar-nos às condições existentes a
cada momento na serra, ao invés de estarmos à espera do surgimento das
condições ideais.
A Daniela, num dos passos mais bonitos da nova via aberta no dia 23 de Fevereiro, a "Sofrer até doer!"
A Daniela, num dos passos mais bonitos da nova via aberta no dia 23 de Fevereiro, a "Sofrer até doer!"
Desta vez viajámos com a esperança de realizar alguma coisa interessante no campo da escalada mista.
Ao longo dos anos acostumámo-nos a elevar o periscópio e a
perscrutar as paredes da Serra da Estrela, cada vez que a neve e o gelo dão o
ar de sua graça.
Existem certas linhas bem definidas que sempre vaguearam
pela minha memória. Projectos adiados à espera das melhores condições físicas e
psicologias para serem escalados. Geralmente, são vias que se adivinham mais
duras, aquelas que julgamos constituírem o “passo seguinte”. Sectores como o
“Powermix”, Face Oeste do Cântaro e certas paredes interiores com orientação
norte, no Covão do Ferro, entre algumas outras, albergam ainda grandes
quantidades de desafios apenas dependentes da decisão do escalador certo, no
momento adequado.
Um desses “momentos adequados” surgiu no último dia 22 de
Fevereiro.
Nos últimos tempos, temos adoptado um esquema de treinos
mais virado para a escalada, focando-nos não apenas no sistema cardiovascular
(a pensar na alta montanha) mas também na força e resistência. O pequeno muro
montado num dos quartos da casa, até bem pouco tempo vocacionado apenas para
pendurar roupa a arejar em cabides, começou finalmente a ter um uso mais
honrado. Motivados pelos últimos progressos, decidimos tentar algo mais
ambicioso ao nível da dificuldade técnica.
Por volta das onze da manhã, uma calmaria nas condições
climatéricas permitiu abrir de novo a estrada da Torre e, minutos depois,
estacionámos na famosa “Curva do Cântaro”. Descemos o habitual canal de acesso
à Face Oeste do Cântaro encontrando uma neve espectacularmente transformada. As
boas condições faziam antever um bom dia de aventura vertical.
A descer o canal, em busca da "Big one".
A descer o canal, em busca da "Big one".
Um rápido reconhecimento geral em busca da via que nos
suscitasse a maior inspiração, colocou-nos na base de uma estreita goullote que
dividia uma laje enorme da parede principal. Acabámos por encontrar a entrada
mais lógica para a nova via de escalada mista. Uma espécie de “seat start” de
aquecimento, para as dificuldades que se adivinhavam a seguir.
A Daniela no pequeno corredor "seat start", da nova via.
O segundo lance transformou-se num exercício duro de gerir, para mim impossível de encadear “à vista”, não tanto pela intensidade dos movimentos mas, mais pela dificuldade em colocar boas protecções ao mesmo tempo que tentava bloquear em gancheios bastante físicos e precários. Eventualmente, lá fui conseguindo colocar alguns friends e entaladores excêntricos (verdadeiras protecções “Yuupii!” quando as fissuras se encontram congeladas) mais ou menos decentes, numa fissura aberta e enganadora, algo atípico no granito perfeito da Serra da Estrela.
Dois momentos no segundo lance, um dos mais duros da via, um potencial M7, à espera do respectivo encadeamento... quiçá no próximo ano...
A Daniela no pequeno corredor "seat start", da nova via.
O segundo lance transformou-se num exercício duro de gerir, para mim impossível de encadear “à vista”, não tanto pela intensidade dos movimentos mas, mais pela dificuldade em colocar boas protecções ao mesmo tempo que tentava bloquear em gancheios bastante físicos e precários. Eventualmente, lá fui conseguindo colocar alguns friends e entaladores excêntricos (verdadeiras protecções “Yuupii!” quando as fissuras se encontram congeladas) mais ou menos decentes, numa fissura aberta e enganadora, algo atípico no granito perfeito da Serra da Estrela.
Dois momentos no segundo lance, um dos mais duros da via, um potencial M7, à espera do respectivo encadeamento... quiçá no próximo ano...
Entre alguns descansos, os movimentos foram dissecados e o lance finalmente resolvido.
Uma Daniela bastante sorridente emergiu na reunião, após ter
escalado todo o lance e descobrir, com satisfação, que os treinos adaptados à
escalada estavam a dar os seus resultados e que estes eram muito positivos.
A Daniela a emergir do aéreo segundo lance, após confirmar os bons resultados dos ultimos treinos.
A Daniela a chegar à cómoda reunião do segundo lance da via, um dos mais duros do dia.
A Daniela a emergir do aéreo segundo lance, após confirmar os bons resultados dos ultimos treinos.
A Daniela a chegar à cómoda reunião do segundo lance da via, um dos mais duros do dia.
Uns lances sem muita história fizeram-nos ganhar terreno e altura na Face Oeste até darmos de cara com o muro superior intimidativo e vertical. Umas fissuras promissoras cortavam a parede de alto a baixo por isso, esperávamos encontrar boas possibilidades para gancheios potentes e – mais importante – boas possibilidades para proteger o lance convenientemente.
A iniciar o terceiro lance, "sem história".
Seguiu-se uma escalada atlética de antologia, mais uma vez entrecortada por um ou dois pontos de descanso para análise do terreno superior. Passado algum tempo, dois braços cansados cravavam os piolets nos últimos tufos de erva e neve congelados, para erguerem um corpo arfante e o atirarem para dentro de um nicho confortável e perfeito para montar a reunião. Poucos minutos depois, respirava de alívio enquanto admirava o culminar de um lance magnífico ao mesmo tempo que assegurava a minha companheira.
Dois momentos no penultimo lance da via, um dos mais duros. Aéreo e espectacular.
Após ultrapassar o crux do penultimo lance, uma proposta de M7, com bons gancheios e a promessa de ante-braços inchados!
A Daniela dava o tudo por tudo para escalar o largo em livre e, no processo, evoluía o mais rápido que as suas forças o permitiam, tentando ultrapassar a sombra projectada pela vertente oposta, que escalava também, à medida que o Sol se punha no horizonte.
- Uau, que lance espectacular! – exclamou a Daniela
imediatamente após os últimos passos difíceis.
A noite caía agora a trote acelerado.
A Daniela a ultrapassar os ultimos movimentos do penultimo lance da espectacular "Divina", com a noite a avançar em passos largos.
A Daniela a ultrapassar os ultimos movimentos do penultimo lance da espectacular "Divina", com a noite a avançar em passos largos.
As lanternas frontais saltaram das mochilas para serem
colocadas nos capacetes.
Faltava apenas um lance para o topo do Cântaro mas, a via
teimava em não ceder aos nossos desejos:
- Uma escalada mais fácil agora, por favor!
O que se seguiu, foi um episódio de pequenas trapalhadas fomentadas
pela pressa de sair dali antes que a noite entrasse em pleno:
1 – Uma mesa marcada para o jantar no restaurante Varanda da
Estrela, em Penhas da Saúde, colocava-nos fogo no rabo… “Vamos! Vamos!”
2 – Uma “cabeçada” com o capacete desligou o frontal e não o
conseguia voltar a ligar com as luvas postas, isto a acontecer logo no passo
mais delicado… “Argg! Que raiva!”
3 – O terreno seguia muito exigente e, num passo de oposição
encostei a anca à rocha e nesse processo, a corda engatou-se acidentalmente num
dos mosquetões porta-material do arnês. Ao tentar escalar, sentia o corpo a ser
puxado para trás. Sem a luz do frontal, não conseguia compreender o que
acontecia… “Merda! Arrgg! Que porcaria se passa agora?! Arrg!”
Inexoravelmente, a noite já se tinha imposto e, nada a iria
abrandar, daí que, mais valia acalmar os ânimos e proceder calmamente. Uma
queda mal dada desencadeada por uma parvoíce por causa da falta de concentração
seria, no mínimo, ridícula.
Com o espírito mais tranquilo, terminámos o ultimo lance. Debaixo
de um magnífico céu estrelado, celebrámos a conclusão de uma não menos magnífica
aventura. Celebrámos também a inauguração da “Divina”, a via de escalada mista
tecnicamente mais difícil que abrimos até àquele dia na Serra da Estrela. Uma
via a repetir, sem qualquer dúvida, com o intuito de tentar realizar o
respectivo encadeamento.
A Daniela no dia seguinte, a ultrapassar um dos lances chaves da segunda via aberta no fim de semana. Os tufos de erva congelados, constituíam verdadeiros pontos de tracção, como se de uma cascata se tratassem.
A Daniela no dia seguinte, a ultrapassar um dos lances chaves da segunda via aberta no fim de semana. Os tufos de erva congelados, constituíam verdadeiros pontos de tracção, como se de uma cascata se tratassem.
Não satisfeitos, no dia seguinte, lançámo-nos a uma esquina
atraente, mesmo à direita da parte superior da “Divina”. Apesar de a maior
parte do gelo ter-se precipitado e as paredes mais expostas ao Sol
apresentarem agora a rocha nua, a secção que escolhemos possuía ainda um
aspecto invernal e, alguma “colagem” de neve gelada, o que prometia uma escalada
mista mais “adequada”.
Com os músculos ainda doridos dos esforços do dia anterior,
preparei-me para enfrentar a primeira passagem mais dura da via, constituída
por um diedro extra-prumado. Uma breve vista de olhos revelou uns passos de
aspecto impossível e aparentemente “improtegíveis”, pois a fissura que dividia
o diedro era demasiado larga, inútil até para o maior friend pendurado no meu
arnês. Contudo, surpreendentemente, uma fina fissura surgiu na parede contígua
ao diedro, exactamente no local oportuno para permitir a protecção conveniente.
Dois pequenos entaladores bem colocados protegeram a passagem e, uns gancheios
“à bomba”, permitiram escalar todo o lance “em livre”. Seguiu-se a escalada da
Daniela que, em boa performance, ultrapassou aquele obstáculo.
A caminho do crux do lance numero três da nova via.
A caminho do crux do lance numero três da nova via.
O primeiro objectivo do lance seguinte foi alcançar uma
chaminé, cuja entrada hiper incómoda estava constituída por uma passagem de
“reptanço” que incluiu uma tracção delicada num bloco instável.
A tentar entrar na chaminé do terceiro lance. Passos duros e incómodos.
A última parte do lance, escalou uma estreita goullote, com uma bela e atlética saída para a plataforma da reunião constituída por uma passagem vertical em dry-tooling.
A tentar entrar na chaminé do terceiro lance. Passos duros e incómodos.
A última parte do lance, escalou uma estreita goullote, com uma bela e atlética saída para a plataforma da reunião constituída por uma passagem vertical em dry-tooling.
Após um último lance de ressaltos e passagens difíceis
ganhámos o cimo do Cântaro Magro, terminando assim mais uma bonita via
invernal.
Três momentos da Daniela a terminar o espectacular terceiro lance da nova via. Belos movimentos em gancheios perfeitos.
Com o vento a aumentar exponencialmente, abandonámos o “cume” da serra e fizemo-nos à estrada, com um sorriso de orelha a orelha.
Uma vez mais, a Serra da Estrela, não defraudou.
Paulo Roxo
Paulo Roxo
A ultrapassar um dos vários ressaltos dificeis do ultimo lance da nova via.
Os ultimos movimentos de escalada mista do magnifico fim de semana.
Os topos:
(As fotos utilizadas para os croquis correspondem a outras temporadas)
4 Comments:
Espectacular actividade y espectacular relato!!!!
Fantástico. O Cântaro está brutal.
Nos fomos este fim-de-semana. Apesar do calor a neve estava ainda muito boa. Fizemos o "Buraco...Prazeres infernais" mas o buraco estava cheio de neve o que transformou o segundo lance mais difícil. Ao pé destas fotos não foi nada!
Ana Teresa
Claro que quis dizer "Prazeres invernais" não "infernais". Não foi um inferno!
Epá. Uma repetição de uma das vias mistas obscuras e esquecidas! Muito bem, parabéns e continuem a dar-lhe!! ;)
Paulo Roxo
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